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Descansar no mar

novembro 22, 2023

Ontem enterrei minha mãe. Enterramos, meu pai, meu irmão e eu. Enterramos, não, porque apesar de conhecer o valor da terra, de um jeito tão íntimo e intuitivo, de ter vivido sobre a terra com os dois pés pesadamente colocados, como uma planta de raiz longa, minha mãe pediu que a jogássemos no mar. Ao sabor do mar, o mar que amo tanto, tanto quanto amo minha mãe. A cinza transformou-se em vento, em pó, em água, em sal, em bolinhas. A cinza metamorfoseou-se dentro e fora da água, no contato com as ondas, e brincou. Cheguei à praia no dia anterior e pedi ao mar sua benção, e pedi que ele pudesse estar preparado para receber minha mãe. Meti apenas os pés na água. Foi solene. 

No dia seguinte, ao voltar à praia, à pouca distância estavam os albatrozes, esses bichos tão fieis a seus laços, migradores de tanta distância. Um cortejo de albatrozes e, conosco, a matilha de cachorros da rua que sempre me acompanha.

A água clara, ondas bem feitas e fortes, o barulho do mar. E só o barulho do mar. Fez silêncio dentro de mim para o desejo dessa outra criatura que me produziu, e que viveu não de todo a seu modo, como de uma ou de outra forma me parece que a ninguém cabe fazer, mas de um modo em que sobrevieram brechas bonitas, buracos e espaços de transformação. De quem herdei, ou assim quero que seja, uma sensibilidade dura, de mãos sujas. Um olhar para os sentidos da terra, das coisas da terra, do mar. A matilha de companheiros na passagem entre a vida e a morte, como algumas leituras simbólicas identificam os cachorros, os albatrozes em seu sinal de boa viagem, o sol, a água clara e fria. Todos tecidos em símbolos.

Jogar no mar as cinzas da minha mãe foi vê-la virada em água fluida, que vem e vai, que não se acaba ou começa, mas só se transforma, e a cada logo surge de um outro jeito, mas sempre a partir da mesma matéria. Foi um ato de aprendizagem que me deu minha mãe professora, e pude escutá-la, da beira, dizer pra eu não ir tão fundo, mas sem me impedir de brincar na água do mar, esse lugar onde eu fui e sou, sempre, repleta. Repleta de imensidão, no alívio da minha insignificância, onde eu posso só ser e estar. Esse mar que, tal como minha mãe, sempre me acolheu e acalmou. Esse mar que agora também é minha mãe. Te amo.

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